Qualquer docente, que esteja vinculado,
direta ou indiretamente, ao ensino de
1º e 2º graus, pode detectar
problemas nesses níveis, ao verificar
que uma grande parcela de vestibulandos
ingressa na Faculdade com sérias
deficiências em sua comunicação
escrita. E o pior é que, quando
o ingresso ocorre em Faculdades de Letras,
os mesmos ex-vestibulandos podem chegar
ao fim do curso, sem grandes acréscimos,
e voltar aos níveis de 1º
e 2º graus, agora na qualidade
de professores de Português, muito
possivelmente para engrossar a bola
de neve dos problemas detectados.
É um círculo vicioso bastante
negativo, especialmente numa época
em que existem trabalhos de assessoria
de boa qualidade, desde os Guias Curriculares
até atividades individuais ou
de equipes (em Universidades, em DREs
ou DEs), passando pelos subsídios
para a implementação do
Guia Curricular de Língua Portuguesa
para o 1º grau, elaborado pela
C.E.N.P. da Secretaria da Educação.
Talvez fosse válido já
considerar que, se esses suportes não
estão dando a sustentação
que objetivam, é possível
que a base inicial – os próprios
Guias Curriculares – esteja inadequada
e seja urgente a sua reformulação,
evidentemente por especialistas dos
vários níveis de ensino
e de diversas Universidades de bom conceito.
Mas o que dissemos acima não
exime, em hipótese alguma,
as Faculdades de Letras de culpa nesse
processo deteriorado de aprendizagem
do Português, uma vez que elas
poderiam aumentar de modo considerável
aqueles pequenos acréscimos
que dão aos seus formandos,
se com prioridade pensassem na formação
do professor de 1º e 2º
graus. Favoreceria esse propósito,
além naturalmente do desenvolvimento
de maior consciência desse objetivo
fundamental, uma profunda discussão
de reformulação curricular
no 3º grau, que possibilitasse,
não só maior ênfase
ao ensino vernáculo, como também
a divisão deste, em pelo menos
uma primeira metade de estudos predominantemente
lingüísticos apontando
para a língua veicular, e uma
segunda metade de estudos literários
explorando a visão estética
da língua.
Assim, vemos que tem de haver preocupação,
e muita, com problemas do 1º
e 2º graus, principalmente da
parte dos professores que assumem
a responsabilidade pela formação
de docentes desses níveis.
É sempre com satisfação
e reconhecimento que se há
de cumprir, em qualquer setor universitário,
a árdua tarefa de organizar
trabalhos que estimulem a necessária
integração entre os
vários níveis de ensino,
sem dúvida uma das metas mais
promissoras para os cursos de graduação
e, mesmo, para os de pós-graduação
do ensino de 3º grau.
Teoricamente, seria desnecessário
referir aqui a complexidade do ensino
do Português como língua
materna, tendo em vista o grau de
competência lingüística
de que já é portadora
a criança quando entra na escola.
É claro que, sendo a competência
de língua oral, cumpre iniciar
e desenvolver a língua escrita,
desde logo o professor considerando
a importância das diferenças
entre o oral e o escrito, e sabendo
pôr em evidência sempre
a precedência da primeira modalidade
de linguagem. Talvez também
fosse dispensável lembrar que
é o Português o suporte
de todas as outras disciplinas, que
dele se servem para veicular suas
técnicas e seus conhecimentos,
sendo justo que já viesse a
merecer maior consideração
por esse caráter multidisciplinar.
Nunca é demais, todavia, ainda
teoricamente, tornar redundantes algumas
afirmações sobre problemas
que se detectam no 1º e 2º
graus. Queremos nos referir, de forma
ligeira, dentro do espaço de
que dispomos, a alguns pontos que
nos parecem fundamentais no tratamento
de questão tão significativa.
A disciplina de Português,
no 1º e 2º graus, funciona
como se fosse um Departamento, sem
que tenha a unidade e a estrutura
departamental. Constitui-se no geral
de bom número de docentes,
que se distribuem por séries
diversas, com muitos alunos, a tratar
de problemas de alfabetização,
a tratar de problemas da fala e da
escrita, da preocupação
em firmar as estruturas básicas
da língua, em desenvolver a
criatividade dos alunos, em lhes ministrar
noções básicas
da história da língua
e, ainda, tendo de lhes dar vasto
panorama da literatura nacional e
também da antecedente, a portuguesa.
Percebe-se que o docente está
inserido num complexo de conteúdos,
os quais, mais racionalmente, deveriam
ser distribuídos em disciplinas
diversas, ou pelo menos em duas: uma
que cuidasse da língua com
seu caráter veicular, como
meio objetivo de comunicação;
e outra, que procurasse explorar a
estética da língua,
para estimular a leitura e desenvolver
a criatividade dos alunos, bem como
os conhecimentos mínimos de
literatura que são programados
no 2º grau. Trata-se de uma cisão
meramente didática, que no
mesmo nível poderia ter o seu
ponto de encontro numa terceira disciplina,
a de Técnica de Redação,
com a aplicação dos
recursos lingüísticos
e literários assimilados.
Essa divisão de trabalho poderia
dar melhores condições
a muitos docentes que, com muitas
aulas e muitos alunos, ainda têm
o dever de se distribuírem
por conteúdos heterogêneos,
no geral privilegiando os de sua preferência
e deixando à sombra aqueles
para os quais têm menos motivação,
como é o caso, por exemplo,
da árdua – mas muito
importante – tarefa de correção
e comentários das redações
propostas. E ainda teria o mérito
de evitar a defasagem que praticamente
existe, entre 1º e 3º graus,
quanto à continuidade dos estudos
gramaticais, bem como evitar, no máximo
possível, o conflito da expressão
comum da língua com a de textos
altamente literários, um dos
fatores, parece-nos, da quebra da
seqüência do comportamento
perante a língua, entre a 4ª
e a 5ª séries do 1º
grau.
De outra parte, não podemos
deixar de nos referir aqui, ainda
que de passagem, ao papel do livro
didático, tanto mais significativo
quanto menor for a formação
do docente, que, diante da dificuldade
em que inicialmente se encontra, não
tem dúvida em seguir na totalidade
a linha de trabalho do compêndio
que lhe é sugerido ou imposto.
Paradoxalmente, começamos por
dizer que consideramos o livro didático
como positivo colaborador do docente,
mas em razão específica
dos exercícios já montados,
que poupam o esforço e o tempo
de quem tem, por motivo óbvio
de salário aviltado, a necessidade
de ministrar grande número
de aulas. E mesmo sobre esses exercícios,
parece natural supor que a melhor
formação do professor
lhe possa dar condições
suficientes de selecioná-los
e de adequá-los ao nível
trabalhado, enquanto que, em muitos
casos, o livro didático não
revela esse necessário cuidado.
Tal problema de adequação
e de seqüência no livro
didático é mais flagrante
no selecionar dos textos, que em grande
parcela deixam de ser úteis,
ou chegam até a causar dificuldades,
ao docente que se entrega inteiramente
à orientação
do compêndio utilizado. O professor
precisa então recorrer à
sua reflexão crítica,
para conduzir o livro didático
e não ser conduzido por ele,
se quiser obter satisfatório
resultado em seu ensino. Maior mal,
ainda, é o malfadado Livro
do Professor que, proposto para evitar
dificuldades ao docente, acaba paradoxalmente
por comprometer-lhe o desempenho,
uma vez que lhe anula a oportunidade
de uma reflexão iterativa sobre
a matéria e, por conseqüência,
o ensejo de poder solidificar cada
vez mais os seus conhecimentos.
Infelizmente, em nosso país,
o livro didático está
em forte dependência de altos
interesses comerciais, quando a sua
produção poderia e deveria
ficar sob a inteira responsabilidade
das Universidades Oficiais, que teriam
assim um meio de devolver à
comunidade o produto de sérias
pesquisas em que, para muitos, se
investe tanto.
O importante acima de tudo –
temos de repetir – é
que a Universidade se preocupe mais
com os problemas do 1º e 2º
graus, porque é exatamente
das boas condições desses
níveis que depende o melhor
desenvolvimento do 3º grau. E
é louvável que se montem
projetos visando a essa integração,
como o do convênio das Universidades
Estaduais paulistas com a Secretaria
da Educação, a proporcionar
nos últimos cinco anos um grande
número de cursos de atualização,
para professores I e III da Rede Oficial
de São Paulo. Mas não
basta o desenvolvimento de tais cursos,
sendo também preciso que se
discutam novas programações
curriculares, que muito maior número
de trabalhos de pesquisas, mais dissertações
e teses se voltem para esse campo
tão fértil, tão
necessitado das melhores reflexões
do ensino superior.
(VOZ DA TERRA – 07/10/86)