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Inquietações de Assis retrata deliciosamente o cotidiano da vida do interior. A centenária Assis é homenageada neste livro dentro de aspectos muito peculiares. Alguns personagens característicos, eventos emocionantes e seus aspectos políticos e sociais aparecem em artigos publicados pelo autor em jornais locais desde 1975.
O destaque particular, ao ensino e ao professorado, representa a íntima relação do autor com esta cidade de efetiva tradição universitária.

     :: Sobre o Ensino Português

Qualquer docente, que esteja vinculado, direta ou indiretamente, ao ensino de 1º e 2º graus, pode detectar problemas nesses níveis, ao verificar que uma grande parcela de vestibulandos ingressa na Faculdade com sérias deficiências em sua comunicação escrita. E o pior é que, quando o ingresso ocorre em Faculdades de Letras, os mesmos ex-vestibulandos podem chegar ao fim do curso, sem grandes acréscimos, e voltar aos níveis de 1º e 2º graus, agora na qualidade de professores de Português, muito possivelmente para engrossar a bola de neve dos problemas detectados.

É um círculo vicioso bastante negativo, especialmente numa época em que existem trabalhos de assessoria de boa qualidade, desde os Guias Curriculares até atividades individuais ou de equipes (em Universidades, em DREs ou DEs), passando pelos subsídios para a implementação do Guia Curricular de Língua Portuguesa para o 1º grau, elaborado pela C.E.N.P. da Secretaria da Educação. Talvez fosse válido já considerar que, se esses suportes não estão dando a sustentação que objetivam, é possível que a base inicial – os próprios Guias Curriculares – esteja inadequada e seja urgente a sua reformulação, evidentemente por especialistas dos vários níveis de ensino e de diversas Universidades de bom conceito.

Mas o que dissemos acima não exime, em hipótese alguma, as Faculdades de Letras de culpa nesse processo deteriorado de aprendizagem do Português, uma vez que elas poderiam aumentar de modo considerável aqueles pequenos acréscimos que dão aos seus formandos, se com prioridade pensassem na formação do professor de 1º e 2º graus. Favoreceria esse propósito, além naturalmente do desenvolvimento de maior consciência desse objetivo fundamental, uma profunda discussão de reformulação curricular no 3º grau, que possibilitasse, não só maior ênfase ao ensino vernáculo, como também a divisão deste, em pelo menos uma primeira metade de estudos predominantemente lingüísticos apontando para a língua veicular, e uma segunda metade de estudos literários explorando a visão estética da língua.

Assim, vemos que tem de haver preocupação, e muita, com problemas do 1º e 2º graus, principalmente da parte dos professores que assumem a responsabilidade pela formação de docentes desses níveis. É sempre com satisfação e reconhecimento que se há de cumprir, em qualquer setor universitário, a árdua tarefa de organizar trabalhos que estimulem a necessária integração entre os vários níveis de ensino, sem dúvida uma das metas mais promissoras para os cursos de graduação e, mesmo, para os de pós-graduação do ensino de 3º grau.

Teoricamente, seria desnecessário referir aqui a complexidade do ensino do Português como língua materna, tendo em vista o grau de competência lingüística de que já é portadora a criança quando entra na escola. É claro que, sendo a competência de língua oral, cumpre iniciar e desenvolver a língua escrita, desde logo o professor considerando a importância das diferenças entre o oral e o escrito, e sabendo pôr em evidência sempre a precedência da primeira modalidade de linguagem. Talvez também fosse dispensável lembrar que é o Português o suporte de todas as outras disciplinas, que dele se servem para veicular suas técnicas e seus conhecimentos, sendo justo que já viesse a merecer maior consideração por esse caráter multidisciplinar.

Nunca é demais, todavia, ainda teoricamente, tornar redundantes algumas afirmações sobre problemas que se detectam no 1º e 2º graus. Queremos nos referir, de forma ligeira, dentro do espaço de que dispomos, a alguns pontos que nos parecem fundamentais no tratamento de questão tão significativa.

A disciplina de Português, no 1º e 2º graus, funciona como se fosse um Departamento, sem que tenha a unidade e a estrutura departamental. Constitui-se no geral de bom número de docentes, que se distribuem por séries diversas, com muitos alunos, a tratar de problemas de alfabetização, a tratar de problemas da fala e da escrita, da preocupação em firmar as estruturas básicas da língua, em desenvolver a criatividade dos alunos, em lhes ministrar noções básicas da história da língua e, ainda, tendo de lhes dar vasto panorama da literatura nacional e também da antecedente, a portuguesa.

Percebe-se que o docente está inserido num complexo de conteúdos, os quais, mais racionalmente, deveriam ser distribuídos em disciplinas diversas, ou pelo menos em duas: uma que cuidasse da língua com seu caráter veicular, como meio objetivo de comunicação; e outra, que procurasse explorar a estética da língua, para estimular a leitura e desenvolver a criatividade dos alunos, bem como os conhecimentos mínimos de literatura que são programados no 2º grau. Trata-se de uma cisão meramente didática, que no mesmo nível poderia ter o seu ponto de encontro numa terceira disciplina, a de Técnica de Redação, com a aplicação dos recursos lingüísticos e literários assimilados.

Essa divisão de trabalho poderia dar melhores condições a muitos docentes que, com muitas aulas e muitos alunos, ainda têm o dever de se distribuírem por conteúdos heterogêneos, no geral privilegiando os de sua preferência e deixando à sombra aqueles para os quais têm menos motivação, como é o caso, por exemplo, da árdua – mas muito importante – tarefa de correção e comentários das redações propostas. E ainda teria o mérito de evitar a defasagem que praticamente existe, entre 1º e 3º graus, quanto à continuidade dos estudos gramaticais, bem como evitar, no máximo possível, o conflito da expressão comum da língua com a de textos altamente literários, um dos fatores, parece-nos, da quebra da seqüência do comportamento perante a língua, entre a 4ª e a 5ª séries do 1º grau.

De outra parte, não podemos deixar de nos referir aqui, ainda que de passagem, ao papel do livro didático, tanto mais significativo quanto menor for a formação do docente, que, diante da dificuldade em que inicialmente se encontra, não tem dúvida em seguir na totalidade a linha de trabalho do compêndio que lhe é sugerido ou imposto. Paradoxalmente, começamos por dizer que consideramos o livro didático como positivo colaborador do docente, mas em razão específica dos exercícios já montados, que poupam o esforço e o tempo de quem tem, por motivo óbvio de salário aviltado, a necessidade de ministrar grande número de aulas. E mesmo sobre esses exercícios, parece natural supor que a melhor formação do professor lhe possa dar condições suficientes de selecioná-los e de adequá-los ao nível trabalhado, enquanto que, em muitos casos, o livro didático não revela esse necessário cuidado. Tal problema de adequação e de seqüência no livro didático é mais flagrante no selecionar dos textos, que em grande parcela deixam de ser úteis, ou chegam até a causar dificuldades, ao docente que se entrega inteiramente à orientação do compêndio utilizado. O professor precisa então recorrer à sua reflexão crítica, para conduzir o livro didático e não ser conduzido por ele, se quiser obter satisfatório resultado em seu ensino. Maior mal, ainda, é o malfadado Livro do Professor que, proposto para evitar dificuldades ao docente, acaba paradoxalmente por comprometer-lhe o desempenho, uma vez que lhe anula a oportunidade de uma reflexão iterativa sobre a matéria e, por conseqüência, o ensejo de poder solidificar cada vez mais os seus conhecimentos.

Infelizmente, em nosso país, o livro didático está em forte dependência de altos interesses comerciais, quando a sua produção poderia e deveria ficar sob a inteira responsabilidade das Universidades Oficiais, que teriam assim um meio de devolver à comunidade o produto de sérias pesquisas em que, para muitos, se investe tanto.

O importante acima de tudo – temos de repetir – é que a Universidade se preocupe mais com os problemas do 1º e 2º graus, porque é exatamente das boas condições desses níveis que depende o melhor desenvolvimento do 3º grau. E é louvável que se montem projetos visando a essa integração, como o do convênio das Universidades Estaduais paulistas com a Secretaria da Educação, a proporcionar nos últimos cinco anos um grande número de cursos de atualização, para professores I e III da Rede Oficial de São Paulo. Mas não basta o desenvolvimento de tais cursos, sendo também preciso que se discutam novas programações curriculares, que muito maior número de trabalhos de pesquisas, mais dissertações e teses se voltem para esse campo tão fértil, tão necessitado das melhores reflexões do ensino superior.

(VOZ DA TERRA – 07/10/86)